Um autor clássico e dotado de vida, por definição, é aquele que ganha o bônus da perenidade na medida em que seus temas e questões continuam mobilizando a imaginação dos leitores. Machado de Assis, por certo, está incluído nessa rara categoria e, por isso mesmo, transfonnou-se em uma esfinge difícil de ser decifrada. Como entender o valor desse escritor, cujas narrativas e personagens tanto serviram à sensibilidade do século XIX e ainda hoje reverberam sentimentos e interesses nossos conhecidos?
Muitas foram as respostas delineadas para a questão, em uma vasta bibliografia de estudos e hipóteses, mas o fato é que o segredo do bruxo de Cosrne Velho continua a intrigar criticos e admiradores. José Luiz Passos vem enriquecer essa tradição e propõe uma abordagem singular com vistas a entender por que o autor se tornou, com mérito, a referência central da moderna literatura brasileira.
Dotado de linguagem fluente e clareza conceitual Machado de Assis, o Romance com Pessoas mostra como a arte machadiana foi amadurecendo no decorrer do tempo e das obras sucessivas, enfatizando o papel de indivíduos voltados para uma atitude reflexiva e irônica diante dos seus impasses morais. Mesclando noções tomadas da filosofia, da sociologia e da história literária, este livro apresenta uma minuciosa análise dos traços que marcam alguns dos principais personagens do romancista, cuja disposição meditativa jamais exclui a possibilidade do auto-engano.
Desde a prevenção diante do outro, presente na trama romântica de Ressurreição, passando pela formação do caráter de Brás Cubas ou ainda pelas reminiscencias de Dom Casmurro, entre outros exemplos, a chave da interpretação aqui proposta sustenta-se na idéia de que a prosa machadiana se ocupa em delinear pessoas morais singulares, envolvidas num dilema constante frente a situações sociais instáveis. Para tanto, recorrem com freqüência ao legado da memoria, envolvida numa atmosfera de ambiguidades, ou, ainda, a uma visão crítica e sarcástica que as afasta da realidade empírica. Não raro, essas pessoas recorrem também ao imaginário, evidenciando a divisão moral do sujeito e, com ela, o problema da justiça entre os homens.
Deparamo-nos, então, com um diálogo surpreendente entre Machado de Assis e William Shakespeare, através de um rol de personagens instigantes, donos de uma vida interior complexa que, marcada pelo desacordo consigo, deságua quase sempre no recurso ao poder reparador do passado e da fantasia. Qualidades essas que alimentam o estilo e a habilidade de Machado ao lidar com os mecanismos da escolha humana e as ciladas da subjetividade moderna. Questões capitais nos dias de hoje, a nos sugerir as razões da notável atualidade deste escritor. Clássico, ainda vivo e, mais que nunca, provocativo.